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Cadências 10/03/2017

Cadências são o elemento básico de construção das harmonias. Os tijolinhos pequenos que formam castelos. Entendê-los será a chave da sua compreensão musical.

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Antes de mais nada, se você ainda não está convencido que aprender harmonia é importante, talvez fosse uma boa ler isso primeiro. E talvez você queira ler antes também alguma coisa sobre Escalas, Tonalidades, Modos, Acordes, Campo Harmônico e Função dos Acordes.

Se você está mais ou menos tranquilo com esses conceitos, então vamos adiante!

O que é uma Cadência? Se você não sabe o significado preciso dessa palavra, na teoria musical, provavelmente também já a utilizou em algum sentido coloquial não muito preciso.

Cadência é uma das muitas palavras abusadas na linguagem musical. É comum usá-la, por exemplo, para designar um andamento mais lento e marcado… “Vamos tocar um pouco mais cadenciado!”

Mas a palavra possui um significado técnico preciso dentro do estudo da Harmonia. E trata-se de um conceito absolutamente central para seu entendimento.

Afinal, o que é uma Cadência?

Uma Cadência é uma espécie de “frase” musical, com um sentido “completo”, do ponto de vista harmônico. Trata-se de uma unidade elementar sintaticamente coesa dentro do discurso musical. Uma célula. Um tijolinho.

Se fizermos um paralelo com a nossa língua falada, podemos equiparar o conceito de Cadência ao conceito de Oração.


O que é mesmo uma Oração?

Você se lembra do conceito exato? Uma oração é uma frase (uma sequência de palavras) que possui um sentido completo, do ponto de vista sintático. Ela possui um (e apenas um) verbo, que é o núcleo da oração; e em torno dele normalmente temos um sujeito e um predicado, mas ambos são opcionais.

Mas o que de fato caracteriza a frase como uma oração é seu sentido de completude, de autonomia. Podemos isolar uma oração de um texto e ela provavelmente fará bastante sentido por si só.

Veja por exemplo a seguinte oração: “João quebrou o violão de Pedro”. Mesmo sem saber de onde essa frase foi tirada - sem saber quem são João e Pedro, e o que provocou a confusão - nós conseguimos compreender o sentido da frase. Ela possui um todo coeso. Está “completa”.

O mesmo não aconteceria se pegássemos, por exemplo, apenas um pedaço arbitrário da oração, como “João quebrou”, ou “o violão de Pedro”. O que é que tem o violão de Pedro? Esse pedaço da oração, sozinho, não faz sentido. Está incompleto.

Uma Cadência possui uma característica parecida. Se tocarmos só um pedaço da frase, ela fica meio solta, em aberto… não conseguimos “captar” muito bem o que ouvimos.


Em termos concretos

Sendo prático, uma Cadência é uma sequência de acordes que forma uma frase “completa”, em um sentido bem particular.

Esse sentimento de ‘completude’ se dá quando concluímos a sequência, chegando ao acorde final - o ‘destino’ da sequência, o acorde que ‘dá nome’ à Cadência.

A Cadência é portanto um movimento que nos leva até um acorde de destino. Dizemos “Uma Cadência para Dm” - uma sequência de acordes que se resolve no acorde de Dm.

Então, mais do que uma simples sequência, uma Cadência é um movimento harmônico de resolução.

Resolução?!

Dizer que uma a Cadência é um movimento, implica dizer que ela é composta por pelo menos dois ‘lugares’ - dois acordes - um de início e um de fim. E sendo esse movimento de resolução, leva-nos a imaginar que o primeiro acorde da Cadência é ‘problemático’ em algum sentido, e que o segundo acorde ‘resolve’ aquele ‘problema’.

É mais ou menos esse o sentimento que essas palavras tentam traduzir mesmo. Uma Cadência é um movimento que parte de um acorde tenso e cai em um acorde estável, onde aquela ‘tensão’ se resolve.

Essa descrição de ‘tensão’ e ‘resolução’ deve soar meio abstrata para os iniciantes, mas à medida em que você for aprendendo a reconhecer as Cadências isso vai se tornar mais familiar.

Há quem se arrisque a explicar essa ‘tensão’ em termos matemáticos dizendo, por exemplo, que ela é resultado de uma dissonância muito famosa, conhecida como trítono, sobre o qual já falamos aqui antes.

Vou preferir não me ater a esses detalhes, por hora, e me concentrar no fato de que a Cadência é um movimento ‘de retorno pra casa’. De ‘resolução’. São termos vagos e abstratos por hora, mas com um pouco de prática você vai perceber o que eles significam.

As Cadências básicas

Vamos a alguns exemplos de Cadências, pra você poder explorar um pouco e começar a fazer sentido das coisas.

Tente tocá-las no seu violão e sentir essa tal ‘resolução’ sobre que falamos. É como se fosse uma ‘vontade’ de tocar o próximo acorde.

Se você tocar um e outro, um e outro, e depois tocar só o ‘um’ (o de dominante), fica sentindo vontade de tocar o de tônica ‘pra completar’. É como se o acorde de dominante ‘pedisse’, ou ‘puxasse’ o acorde de tônica… É por isso que normalmente nos referimos ao acorde de dominante como um acorde de ‘preparação’.

Tente sentir isso você mesmo.

Sentir é mais importante que entender!

Vou descrever as Cadências em termos das funções dos acordes na escala; e os acordes em termos do grau que ocupam nela.

Como sempre, vou dar os exemplos em dois tons (C e Am, pra ilustrar nos dois modos) e você se lembre que a mesma coisa vale para qualquer tom, desde que se transponha todos os acordes certinho.


Dominante → Tônica

Essa é a Cadência mais básica de todas. A principal forma dela é a que começa com o acorde de 5o grau, mas também podemos usar o do 7o grau (eles são muito parecidos, lembra?):

  V → I
    G7 → C
    E7 → Am

  VII → I
    Bø → C
    G#º → Am

Muitas músicas, ou partes delas, utilizam apenas esses dois acordes, alternados.

Essa alternância representa o movimento harmônico tonal mais simples de todos - um padrão de oposição tensão/relaxamento (ou forte/fraco).

Vamos explorar melhor isso mais adiante, quando formos desenvolver a relação entre cadências e ritmo. Mas adianto que essa alternância, apresentada das mais diversas formas, é um fator crucial da linguagem tonal.

O acorde de dominante representa portanto o acorde de oposição mais direto em relação à tônica. Esse é, sem dúvida, o primeiro acorde com que você deve ter familiaridade, dentro de uma tonalidade (depois da tônica, obviamente).


Subdominante → Tônica

As Cadências desse tipo são chamadas de ‘plagais’ ou ‘fracas’, porque parecem ter um sentimento de resolução um pouco mais fraco do que o anterior (talvez porque o acorde inicial não tenha o trítono?):

  II → I
    Dm → C
    Bø → Am

  IV → I
    F → C
    Dm → Am

Essa forma também é usada num padrão de alternância, como mencionado acima, no caso da dominante. Mas com um ‘colorido’ diferente, ou com uma ‘força’ um pouco menor.

Essas duas primeiras cadências costumam ser muito usadas alternadamente, formando uma frase maior, com 4 acordes:

SubDom → Ton → Dom → Ton.


Subdominante → Dominante → Tônica

Essas são as Cadências conhecidas como ‘perfeitas’ ou ‘completas’.


  II → V → I
    Dm → G7 → C
    Bø → E7 → Am

  IV → V → I
    F → G7 → C
    Dm → E7 → Am

Também podemos formar essas Cadências com o acorde de 7o grau, em vez do 5o, mas isso não é tão comum e, no fim das contas, é apenas uma mudança de sonoridade. Em termos de estrutura, é a mesma coisa!

Essas duas Cadências são a base da base com a qual nós conseguimos analisar 80% da música ocidental. São as famosas 2-5-1 e 4-5-1. (Se você nunca ouviu falar delas, saiba que são muito famosas!)

A segunda delas (4-5-1) é especialmente famosa por ser muito usada em blues e rock.

É comum interpretar essa cadência como uma progressão de tensão - vamos primeiro para a subdominante (tensão fraca), depois aumentamos a tensão (dominante) e então resolvemos.

Mas gosto mais de entender que ela é uma forma especialmente útil por possuir três acordes, o que nos permite formar sequências mais ricas, ritmicamente falando. Vamos desenvolver isso melhor mais adiante. Ainda é cedo.

Encadeando Cadências

A maior parte das músicas ocidentais, conhecidas como músicas tonais (juro que chego nesse ponto qualquer dia!) pode ser entendida harmonicamente como uma sequência ou um encadeamento de Cadências.

Esse encadeamento se dá como se fosse um jogo de dominó, em que juntamos duas peças que tem uma das pontas em comum, e assim vamos formando uma longa sequência…

Vamos a um exemplo (beeeem típico, diga-se de passagem): Imagine a seguinte sequência de acordes:

     V   I
  I      II  V   I
  C  A7  Dm  G7  C

Nessa sequência, existem duas Cadências! A principal delas, e que deve ser mais fácil de reconhecer, são os 3 últimos acordes (Dm-G7-C), que consistem em um 2-5-1 caindo na tônica principal. Só que no meio do caminho existe também um A7-Dm, que também é uma Cadência. Uma 5-1 !

Como assim?! O Dm não é o 2o grau?! E o A não é o 6o?!

Sim. Se estivéssemos falando em relação ao C. Mas aqui estamos falando em relação ao tom de Dm!

Isso é muito importante! Preste atenção!

O 5-1 nesse caso se refere ao tom de Dm! Nesse caso, o acorde de A7 nem sequer pertence à tonalidade de C… Pertence à tonalidade de Dm! Na tonalidade de Dm, o A7 é o quinto grau (dominante).

É como se, por alguns compassos, nós mudássemos rapidamente para o tom de Dm, fazendo uma Cadência 5-1, e quando chegássemos no Dm, então, voltássemos ao tom original e aquele acorde voltasse a desempenhar o papel de 2o grau do C.

É exatamente isso que acontece! Só que essa passagem é tão rapidinha que a gente não chega nem a considerar que a música mudou de tom (modulou).

Ainda assim, harmonicamente, o que acontece é que essa sequência possui duas Cadências - uma primeira (5-1) que nos leva para o acorde de Dm, e que, por sua vez, já faz parte da Cadência 2-5-1 que nos levará de volta pra casa!

Note que o acorde de Dm desempenha dois papéis: ele é o primeiro grau temporário onde se resolve a Cadência A7-Dm, e é também o segundo grau que começa a Cadência final, que vai se resolver em C.

     V   I
  I      II  V   I
  C  A7  Dm  G7  C


Outro exemplo

Mais um muito, muito, muito comum!

     V   I           V   I
  I      IV  V   I       IV V   I
  C  A7  Dm  E7  Am  C7  F  G7  C

Vamos às cadências:

A primeira é igual ao exemplo de cima: A7-Dm, que é um 5-1 pro acorde de Dm.

Só que nesse caso, o acorde de Dm faz o papel de 4o grau do Am, compondo, junto com o E7, uma cadência 4-5-1 para o Am.

Em seguida, fazemos uma cadência 5-1 pra cair no F, que por sua vez é o 4o grau que inicia a última cadência 4-5-1 que termina no C, onde tudo começou.

Por curiosidade (já que isso é assunto pra um outro dia) essa passagem pelo Am é normalmente considerada uma modulação (uma mudança de tom). Nesse caso, uma modulação também muuuuuito comum: para o tom relativo.

Falando em Cadências

A primeira parte de um chorinho típico poderia ser descrita assim, harmonicamente:

Depois da introdução, a música começa no acorde da tônica, faz uma Cadência para o acorde de 2o grau, e de lá faz uma Cadência para o 6o grau, modulando para o tom relativo; aí ela faz uma Cadência em torno da nova tônica (o sexto grau da original), e depois uma Cadência terminando no quinto grau do tom original, que é o acorde que chama a resolução que dá início à segunda frase. A segunda frase é quase igual à primeira, mas a segunda parte dela, em vez de se resolver no acorde de tensão, vai um pouco mais rápido e se desfecha numa grande e forte Cadência de retorno, enfim, para o 1o grau original.

Imagino que seja difícil, pra quem não está familiarizado, acompanhar o que foi dito nesse parágrafo. Mesmo assim, peço que leia novamente. Ainda que você não tenha conseguido visualizar direitinho o que foi dito, entenda pelo menos a ‘forma’ do que está sendo dito. E tente convencer-se do seguinte:

As Cadências são o elemento básico, o tijolo, usado para construir a ‘narrativa’ harmônica da música.

Outra coisa: o chorinho é um estilo que desenvolve a harmonia funcional ao extremo! E é por isso que ele é ótimo para se entender harmonia! A maioria dos outros estilos me faria escrever um parágrafo bem menor! Esse é apenas um exemplo bem característico que estou usando para ilustrar.

Seguindo em frente

Há muitos elementos ainda para se explicar: acordes substitutos, inversões, dissonâncias, Cadências que não terminam, modulações, simetrias …

Não vai dar pra esgotar todos os artifícios harmônicos existentes nesse post. O objetivo dessa vez é apenas dar uma idéia, ampla, mas concreta, do que são as Cadências, e do papel que desempenham. Isso sem dúvida é a base mais importante de se entender, o resto são desdobramentos.

Meu conselho é que, a partir daqui, você:

  • Brinque um bocado com essas Cadências básicas, para concretizar um pouco do que falamos;
  • Deduza essas cadências básicas e familiarize-se com elas em outros tons comuns, como G ou D por exemplo; e depois
  • Comece a tentar reconhecer Cadências em músicas que você já sabe tocar.

Com o tempo, você irá começar a conseguir reconhecer Cadências em músicas que você ainda não sabe tocar, apenas ouviu… você não saberá nem em que tom a música está, tampouco que acordes são, mas você reconhece que ali aconteceu um movimento de Cadência se resolvendo naquela nota ali! (Seja lá qual for…)

Quando chegar nesse ponto, você já estará praticamente do outro lado da ponte! Já terá atravessado a dificuldade que eu levei ANOS para vencer! É uma barreira que muito músico profissional ainda não venceu.

Se estiver tendo dificuldade com as músicas que você gosta (dependendo do estilo é um pouco menos óbvio), tente analisar algumas músicas infantis! Atirei o Pau no Gato, Marcha Soldado, Parabéns pra Você! Todas elas seguem essas regrinhas! Se você ainda não entende essas simplesinhas, não vale a pena ficar tentando desvendar as músicas mais complicadas da sua banda preferida… Começe devagar, depois você vai evoluindo!

Lembre-se também (como sempre) que música é arte. Então quebrar as regras faz parte do jogo. Não se assuste se você encontrar passagens que não se encaixam de primeira no que está sendo explicado. O que acontece, muitas vezes, é que uma mesma passagem pode ser interpretada harmonicamente de várias formas… e às vezes simplesmente aceitamos que é uma exceção e seguimos em frente. Música é assim.

Vou escrever alguns posts específicos sobre outros desses elementos que mencionei. Mas por hora, certifique-se de você entendeu o que foi dito aqui, e concentre-se em ‘malhar’ a sua percepção das resoluções e do encadeamento de Cadências. Isso vale ouro!

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